quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Apocalíptica



O verbo grego kalýpto significa "cobrir", "esconder", "ocultar", "velar". Neste sentido ele é usado, por exemplo, em Lc 23,30 ou 2Cor 4,3. Aqui, Paulo diz: "Por conseguinte, se o nosso evangelho permanece velado (kekalymménon) está velado kekalymménon) para aqueles que se perdem...".
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Na Septuaginta, kalypto é usado no mesmo sentido em Ex 24,15;27,2; Nm 9,15; 1Rs 19,13 e em muitos outros lugares. Ex 24,14 diz: "Depois, Moisés e Josué subiram à montanha. A nuvem cobriu (ekálypsen) a montanha". Nm 9,15 diz: "No dia em que foi levantada a Habitação, a Nuvem cobriu (ekálypsen) a Habitação, ou seja, a Tenda da Reunião...". O verbo hebraico assim traduzido é khâsah, "cobrir", "ocultar"
A preposição grega apó indica um movimento de afastamento ou retirada de algo que está na parte externa de um objeto. Assim é usada em Mt 5,29: "Caso o teu olho direito te leve a pecar, arranca-o e lança-o para longe de ti (apó sou)".
Deste verbo deriva o substantivo feminino grego apokálypsis, "revelação", "apocalipse". Em Gl 2,2 Paulo diz a propósito de sua ida a Jerusalém: "Subi em virtude de uma revelação (apokálypsin)...". E o livro do Apocalipse começa assim: "Revelação (apokálypsis) de Jesus Cristo...".
De "apocalipse" deriva "apocalíptica" e é exatamente com esse nome que designamos uma corrente de pensamento e uma literatura surgidas em Israel entre os anos 200 a.C. e 100 d.C., mais ou menos.
Poderíamos dizer que há, assim, três fases marcantes na história da apocalíptica:
·       a época da guerra dos Macabeus contra Antíoco IV Epífanes e o partido helenizante, no séc. II a.C.
·       a partir do domínio romano, que se inicia com Pompeu em 63 a.C.
·       durante as guerras judaicas contra os romanos em 66-73 d.C. e 131-135 d.C.
Deste modo, a literatura apocalíptica funciona como uma literatura de resistência: através da escrita, Israel se manifesta vivo e atuante. Os céus estão fechados? A história, porém, é ainda possível: através do livro, manifesta-se o Espírito, que garante a identidade do povo de Israel.
Provavelmente a mais antiga obra da apocalíptica judaica, o livro de Daniel é uma peça literária de resistência escrita na época da luta dos Macabeus contra a helenização no século II a.C.
Daniel não é o autor do livro. Estamos frente a um texto apocalíptico, escrito em 164 a.C., cujo autor se esconde por trás de um pseudônimo. Daniel talvez jamais tenha existido, embora haja pistas de um certo Danel em Ez 14,14.20;28,3 e um Dnil que aparece no poema de Aqhat encontrado em Ugarit, e que podem ter inspirado o legendário personagem bíblico.
Ez 14,14.20 cita Danel ao lado de Noé e Jó: três homens justos, três heróis populares. Eles são lembrados aqui para dizer que nem estes três justos conseguiriam salvar do castigo uma sociedade que abandonasse Iahweh. Ez 28,3 qualifica-o como sábio, em um oráculo contra o rei de Tiro, quando diz: "Certo, és mais sábio do que Danel, nenhum sábio há que se iguale a ti".
Entretanto, o sábio Daniel (= Deus julga), um jovem judeu de Jerusalém, é o protagonista desta narrativa que estrategicamente é situada na época dos reis babilônicos e persas, no tempo do exílio.
No capítulo 1 o texto conta como, após a deportação dos judeus de Jerusalém para a Babilônia, alguns jovens judeus de famílias nobres são escolhidos e educados durante três anos para, em seguida, servirem ao rei. Entre eles - terão os nomes trocados - estão Daniel (Baltassar), Ananias (Sidrac), Misael (Misac) e Azarias (Abdênego). Só que a descrição do período babilônico feita pelo livro é imprecisa e seu conhecimento das cortes babilônica e persa superficiais.
Não houve, como o livro afirma, uma deportação em 605 a.C.; Baltasar é filho de Nabônides e não de Nabucodonosor; Dario, que é persa e não medo, é um dos sucessores de Ciro e não seu predecessor... Além do que, a doutrina sobre os anjos, o costume de evitar o nome de Iahweh e outros elementos não são daquele tempo, o exílico, mas bem posteriores.
Enfim, uma série de dados que acabam mostrando que a finalidade do livro e seu gênero literário não são históricos. É um escrito da resistência judaica, no duro período da perseguição selêucida. Daniel quer mostrar que, apesar de tudo, é preciso ter uma fé inabalável em Iahweh, porque mais cedo ou mais tarde os judeus sairão vitoriosos e engrandecidos.

Os israelitas sempre haviam considerado fundamental para a comunicação com Iahweh a existência dos profetas. Dt 18,18 diz que a Moisés Iahweh garantira: "Vou suscitar para eles um profeta como tu, do meio dos seus irmãos. Colocarei as minhas palavras em sua boca e ele lhes comunicará tudo o que eu lhes ordenar". Sem Iahweh não existe Israel e sem profecia não se pode saber a vontade de Iahweh.
Ezequiel, falando da crise que se aproxima no confronto com a Babilônia, no século V a.C., já alerta: "Os desastres se sucederão; haverá boato sobre boato. Buscar-se-á uma visão de profeta, mas a lei fará falta ao sacerdote, e o conselho aos anciãos" (Ez 7,26).
O Sl 74,9, lamentando a destruição do Templo de Jerusalém pelos babilônios em 586 a.C., diz: "Já não vemos nossos sinais, não existem mais profetas. E dentre nós ninguém sabe até quando".
Também Lm 2,9, descrevendo o desastre de 586 a.C., diz de Jerusalém:"Por terra derrubou suas portas, destruiu e quebrou seus ferrolhos, seu rei e seus príncipes estão entre os gentios: não há Lei! E seus profetas já não recebem visão de Iahweh".
Já na difícil volta do exílio babilônico, o Sl 77,9-10 joga a seguinte pergunta: "Seu amor esgotou-se para sempre?Terminou a Palavra para gerações de gerações? Deus esqueceu-se de ter piedade ou fechou as entranhas com ira?".
1 Macabeus, obra escrita entre 90 e 70 a.C., e que relata a crise desencadeada, na Judéia, pela helenização forçada, no século II a.C., faz repetidas alusões ao fim da profecia.
Quando, em dezembro de 164 a.C., Judas Macabeu recupera o controle do Templo - que estava nas mãos do partido helenizante - e o purifica, há o problema do altar dos holocaustos que fora profanado e precisa ser demolido. "Demoliram-no, pois, e puseram as pedras no monte da Morada, em lugar conveniente, à espera de que viesse algum profeta e se pronunciasse a esse respeito", diz 1Mc 4,46.
Após a morte de Judas Macabeu, o partido helenizante assume novamente o controle da Judéia, enquanto Jônatas, irmão de Judas e seu sucessor na luta, se refugia no deserto de Técua. 1Mc 9,27 avalia a situação com as seguintes palavras: "Foi esta uma grande tribulação parra Israel, qual não tinha havido desde o dia em que não mais aparecera um profeta no meio deles".
Alguns anos mais tarde, quando o rei selêucida Demétrio confirma o macabeu Simão no sumo sacerdócio, diz 1Mc 14,41 que "os judeus e seus sacerdotes haviam achado por bem que Simão fosse o seu chefe e sumo sacerdote para sempre, até que surgisse um profeta fiel".

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